sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

nº 214 Entre Cruzes. Ranhó. Rianxo.


As últimas postagens serviram-me para achegar uma hipótese sobre a natureza de tantas cruzes como há nos muros rianxeiros, na ideia elementar de que não há uma explicação nem única, nem simples. É muito provável que nunca saibamos a razão de porque alguém decidiu colocar um sinal num pé-direito da sua porta ou numa pedra qualquer de qualquer lugar, pelo que a estas alturas só posso acreditar em que as motivações foram múltiplas, algumas genuínas e outras derivadas. Com isto quero dizer que é muito possível e mesmo provável que alguma vez, ponhamos o caso, alguém colocara na jamba uma cruz onde anteriormente estivesse pendurado o mezuzá, e que outros o imitaram na ideia elementar de que a cruz dá proteção a quem crê nela e a tem presente. 
Um passeio por uma ruela de Ranhó resulta extraordinariamente ilustrativo do que as cruzes representam na paisagem urbana de Rianxo. A rua em questão parece desenhada em função do lavadoiro, uma fonte monumental com rio para lavar ao coberto. A fonte de Ranhó é o polo de atração que faz com que o núcleo urbano se estique como uma ponta de lança.

Google maps

Onde arranca a linha de cor há uma casa belíssima, de muros muito robustos e com um feitio que a singulariza das do seu entorno. Na minha opinião é uma casa barroca, possivelmente do século XVII mas com elementos reutilizados de anteriores construções, algo muito habitual em Rianxo. Num dos muros aparece uma inscrição lindíssima:

Fotografia de Tito Ordóñez.

Resulta impossível de decrifar na sua totalidade, pois parte do texto esta incrustado no próprio muro. Do que se encontra atualmente à vista arriscamo-nos a dizer que a epigrafia está encabeçada pelo anagrama de Cristo IHS [Iesus Hominum Salvator] IYª, sem sentido para mim, ANº [Ano] æ [de] I D...
Muito pertinho desta casa, encontramos outra com um magnífico arco de cortina, s. XV?. Resulta extraordinário que ainda se conserve na sua totalidade, junto com um patamar, igualmente escassos no nosso concelho.


O arco de cortina é muito comprido, lavrado numa soa pedra que forma o lintel da porta. Nalgum momento encurtou-se o vão, acrescentando uma linha de perpianhos na jamba direita, olhando desde fora. Isto leva-me a fazer uma pergunta. Estes perpianhos são os originais movidos para a direita – reenchendo o espaço criado com cachaço– ou se lavraram ex professo para a reforma? Eu acho que são as originais já que se parecem muito às da parte esquerda. Isto resulta da maior importância pois na jamba reformada, no segundo silhar começando desde o arco, encontramo-nos com um interessante graffiti.


Não sei de muitas cruzes em Rianxo marcadas numa cartela. Esta inclusive tem um rebaixe nos cantos do retângulo. Quiçá uma representação da Vera Cruz? Tendo em conta que em Rianxo existia uma capela consagrada a Santa Cruz, agora Ermida da Nossa Senhora de Guadalupe, parece provado que existiu um culto local a este símbolo do cristianismo. Na mesma fachada há outra cruz com uma cartela menos visível por estar mais exposta a erosão. Em realidade são duas, uma acima da outra, que precisariam duma luz rasante para ser vistas com maior claridade. Eu optei por marca-las digitalmente e o resultado pode não ser exato.


Ainda, no mesmo muro, há mais uma cruz, o qual faz desta fachada um caso bem esquisito, somando quatro exemplares e todavia duas com cartelas.


Seguindo a linha marcada no mapa chegamos ao rio com o seu esplêndido lavadouro. Sempre que chego a um lugar assim procuro uma cruz inscrita nalgum lugar: uma pedra isolada, um poste, um muro pertinho... É relativamente habitual encontrar estes símbolos nos lavadouros, como no Rio de Cima, por exemplo. Aqui está num poste ao pé do muro que moldura o lavadouro.


Mas a surpresa estava na fonte ou ainda melhor, na espécie de púlpito constituído pela mureta levantada sobre a abóbeda desta. 


No canto da mureta há uma sequencia de pontos e cruzes verdadeiramente curiosos. 






Os pontos ou covinhas parecem delimitar as cruzes. Entre os signos cristiãs há um que não posso interpretar mas que poderia ser uma marca de canteiro ou propriedade.

                                     

Em resumo, estamos ante uma rua rianxeira de obrigada visita e um exemplo mais das muitas surpresas que podemos encontrar-nos simplesmente com estar um bocadinho atentos nos nossos passeios rianxeiros. 



segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

nº 213 Expediente de limpeza de sangue de Martín Torrado da Figueira, 1645.


Na anterior postagem falava da tese judia a propósito das cruzes gravadas nas jambas das casas, a qual pode ser resumida em função de como estes sinais seriam uma estratégia dos cristãos novos para ocultar a sua velha religião.

Obviamente, este ocultamento teria a ver com a pressão que os judeus sofriam para que abandonassem o país ou se convertessem ao cristianismo. Quantas destas conversões foram sinceras e quantas meras estratégias para a supervivência é algo difícil de saber. O curioso é que nos últimos tempos esta-se a pôr em questão a verdadeira dureza da Inquisição, relativizando a persecução que esta fez sobre os que professavam religiões diferentes à católica. Mesmo estão a aparecer livros que esgotam sucessivas edições negando o etnicídio espanhol nas colónias americanas e o papel exercido pela Inquisição Espanhola ao respeito. Pavero!
Os mecanismos de repressão são tão diversos -e às vezes tão subtis- que não devemos limitar as consequências do apartheid católico sobre os judeus ou muçulmanos a uma lista de executados ou expulsos. Um destes mecanismos repressores são os chamados Expedientes de limpeza de sangue, como o redigido a Martín Torrado da Figueira, padre rianxeiro nascido na paróquia de Leiro em 1621, e autor das Décimas ao Apóstolo, uma das joias literárias galegas da etapa dos mal chamados séculos escuros. Este expediente encontra-se no arquivo histórico da U.S.C. e pode ser consultado a través da sua página web.
Os estatutos de limpeza de sangre eram mecanismos de discriminação legal, já que sem um expediente favorável um não podia exercer cargos na inquisição, nem ingressar na universidade, colégios ou simplesmente ser militar ou crego. Na atualidade estes expedientes são muito valiosos à hora de traçar genealogias já que se remontam a várias gerações atrás para demonstrar que o candidato provem duma família sem nódoa hebraica, ou seja, o expedientado é cristão velho.
Graças ao documento guardado no arquivo histórico sabemos que Martín Torrado tinha a seguinte ascendência e, o que ainda resulta mais interessante, a localidade onde nasceram ditos parentes:

Linha paterna:
Bisavôs
-Pedro da Figueira (Isorna) e Elvira de Ribela (Castelo, Isorna) / Pedro Torrado (Assados) e Theressa Alonso Marinho (Paço de Vimieiro, Boiro) Theressa Alonso Mariño era filha de Fernán Marinho, senhor do Paço de Vimiero.
Avôs
- Rodrigo da Figueira (Isorna) e Mayor Torrado (Assados)
Pai
Juan da Figueira Torrado (Isorna)

Linha materna:
Triavôs
-Domingo de Tarrio (Tarrio, Lainho)
Bisavôs
-Martín Tarrío (Abuim, Leiro) e Catalina de Rial (Abuim, Leiro) / Antón de Somoça (Rianxinho, Rianxo) Francisca Rodriguez (Brião, Leiro)
Avôs
- Juan de Tarrio (Abuim, Leiro) e Dominga Rodríguez (Brião, Leiro)
Mãe
-María de Rial Somoça (Brião, Leiro)

No expediente achega-se uma transcrição literal da partida de batismo que diz:

«A dos de diziembre de seicientos y veinte y uno bautize un niño que se llama Martín hijo de Juan da Figeyra y de Mª do Rial su mujer y fueron compadres Alonso de Abuín y la mujer de Muniz de Buya que se llama Dominga de [A]buín [,,,] »

Por último, afirma-se no documento que «ni sus padres, abuelos ni visabuelos assi paternos como maternos […] jamas fueron ni han sido presos ni condenados por la Santa Inquisicion ni por otro juez por delito de herejia o judeismo […] y sabe que dicho opositor ni ascendientes arriba dichos todos juntos ni ninguno dellos en particular no son ni han sido moros ni rezien convertidos a la fé ni judios ni quemados ni reconciliados ni finalmente de ningun genero de judaismo ni de otra qualquier seta reprobada ni dellos son ni han sido informados ni en publico ni en secreto antes son y an sido buenos y chatolicos xpianos limpios de toda mala raza de moros judios confessos y marranos [,,,]»

À vista da relação de localidades e parentes de Martín Torrado podemos tirar a conclusão da importância que tem, na altura, a vizinhança e a terra nos matrimónios. Praticamente todos os cruzamentos entre diferentes famílias são feitos entre sujeitos que moram no que hoje são os limites do atual Rianxo, a uma distância a pé nunca maior a meio dia de caminhada. Polo lado materno quase que todos os parentes são da paróquia de Leiro e na paterna de Isorna. O lugar mais afastado é Vimieiro, em Boiro, casa grande de Fernán Marinho e Tarrio em Laínho, de onde viria o antropónimo Tarrio. Também sabemos que a conexão com os Torrado de Assados vem pelo matrimónio do seu pai com Mayor Torrado, do que se conclui que o crego Martín escolheu os apelidos da avó paterna de linhagem fidalga, emparentada com os senhorios de Marinho e Torrado, e ignorou os da linha materna, apenas de labradores.

O expediente do padre Martín Torrado é muito minucioso. O informante visita todos os lugares de onde procedem os devanceiros, consulta os livros de batismo e se entrevista com a gente mais idosa que todavia pode lembrar a algum destes parentes. O informe vai valer para que a Martín Torrado lhe outorguem uma bolsa de estudos, já que segundo informa a sua mãe Mayor Torrado, costear a matrícula de seminarista em Compostela acarretaria uma grande carga para a economia familiar. Obviamente que estes informes podiam estar falsificados, ou o informante subornado, mas, neste caso, a leitura  do documento faz-nos pensar que estamos ante um documento veraz.

Deixo aqui a ligação às Décimas ao Apóstolo Santiago, na versão de Romero Lema. Por certo, uma composição onde Martín Torrado faz referência numerosas vezes aos judeus, combatidos sem piedade pelo Apóstolo Santiago e a seu avô, quem lhe transmitiu o seu amor pelo santo mata-mouros. O que não aclara e se este avô foi o da casa Juan de Tarrio ou o de Isorna, Rodrigo da Figueira.
Na próxima postagem visitaremos o lugar de Ranho, em Leiro, um lugar inzado de cruzes muito interessantes, algumas em lugares bem curiosos. Tal vez alguma de conversos?

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

nº 212 Mezuzah


A gente conhece a minha afeição a observar o que me rodeia com olhos curiosos, reparando em detalhes absolutamente insignificantes que passam desapercebidos do pessoal, quiçá pelo simples facto de sempre estar ai. Assim, fui encontrando marcas, letras, símbolos gravados nos muros de templos, vivendas, valos, etc. Um repertório iconográfico que não para de crescer. 
Às vezes, algo faz que a minha cabeça, sempre fatigada, lembre uma imagem e a associe com uma citação, uma informação lida nalguma parte não sempre evocada imediatamente. A questão é que trás a visita que alguns rianxeiros fizemos ao Castelo da Lua –fortaleça rianxeira na desembocadura do rio Te– convidados por Tito –o concelheiro de património– e guiados por Mario –o arqueólogo diretor das excavações–, volvi a repassar as minhas velhas postagens agrupadas baixo a etiqueta Graffiteiros do Passado. Entre todas elas há uma belíssima, quiçá a mais monumental das que ocupam uma jamba da porta duma vivenda particular, localizada no lugar de A Igreja, Leiro. 

©Orjais

Para entender esta imagem recomendo a leitura dum artigo do Anuario Brigantino titulado Viviendas de judíos y conversos en Galicia y el Norte de Portugal. O seu autor é o arquiteto Emilio Fonseca Moretón e pode ler-se na rede [aqui]. Fonseca Moretón fala-nos das cruzes de conversos, tal e como ele as denomina, uns símbolos que os judeus conversos colocariam justo debaixo de onde estivera colocada a mezuzah. Em realidade, o oco que contém este pergaminho da tradição hebraica seria o que diferenciaria uma casa judia duma cristã:

«El modo de vida judío era en todo parecido al de los cristianos salvo en lo relativo a las prescripciones alimenticias, los usos religiosos, las fiestas, y el día de descanso semanal. No existen por tanto condiciones morfológicas singulares que diferencien la vivienda de un judío de la de un cristiano. Lo que caracterizaba y singularizaba externamente la vivienda de un judío era la mezuzá: una pequeña caja que guarda un rollo o pergamino en el que están escritos unos determinados versículos del Deuteronomio y que debe ser colocada, aproximadamente a la altura del hombro de una persona adulta, en el plano interior de la jamba, con preferencia la del lado derecho, de la puerta de entrada a la vivienda.» Vivendas de judíos y conversos en Galicia y el Norte de Portugal. Emilio Fonseca Moretón. O negrito é meu.

Fonseca Moretón fala neste artigo de algumas outras características das casas de conversos como os arcos em cortina manuelinos, tão abundantes em Rianxo, com dois exemplos magníficos na Rua de Arriba.
Mas voltando à jamba de Leiro vemos como guarda similitude com algum dos exemplos expostos pelo arquiteto Fonseca Moretón. Temos duas cruzes, uma delas monumental, e sobre elas, à altura do ombreiro, um rebaixe que bem podia ser a localização do mezuzah. Normalmente o lugar onde se encaixa o pergaminho kosher é apenas uma tira de aproximadamente 20 cm, pouco mais que a caixa que contem uma caneta-tinteiro. Mas o oco vazio seria um sinal muito evidente de que a casa foi ocupada por judeus, assim que resulta crível que optaram por fazé-lo desaparecer com um rebaixe excessivo para o tamanho da mezuzah. E a cruz monumental? Pois também no artigo que vimos comentando há exemplos similares no que se identifica o desenho desta cruz com um candelabro judaico de sete braços ou menorá. 

 ©Orjais

O feito de pôr cruzes nas jambas das vivendas ou dos moinhos explica-se normalmente por razões profiláticas, como precaução ante os maus espíritos e para livrar a vivenda do mal de olho. Eu tenho visto a várias pessoas passar a mão por estas cruzes e persignar-se. Até não faz muito era frequente as pessoas na Galiza fazer-se cruzes ao sair da casa e mesmo se colocavam pequenos crucifixos de madeira ou porcelana nos pórticos, às vezes mesmo com pequenos depósitos para água benta. 
Com certeza pôde haver casas de conversos que destruíssem os habitáculos da mezuzah e colocaram cruzes nas jambas ou anagramas de Cristo nos linteis, mas, obviamente, não todas as cruzes nas jambas têm que ser necessariamente cruzes de conversos. 

Finalmente, e vendo a impressionante quantidade de cruzes que povoam os muros de Rianxo um tem a suspeita de que não é fruto da casualidade e que o fenómeno merece ser estudado a fundo. A câmara municipal da Guarda, na Beira Alta de Portugal, enviou-me faz uns anos um formoso livro e diverso merchandising sobre as marcas mágico-religiosas da sua vila, em todo similares às de Rianxo, seguindo-se nesta publicação a tese judia. Eu não sei qual é a razão de que existam estas cruzes no nosso concelho nem vou defender a sua origem nos cristãos novos, o que sim sei é que cada vez que penso na relação entre a cultura judaica e Rianxo sempre me vem a cabeça o complexo rupestre da Foxa Velha nas abas do Pilotinho, a pouca distância da Igreja de Leiro. Sobre a grande laje da Foxa Velha e quiçá com um intervalo de alguns milhares de anos, habitantes do que hoje é Rianxo foram deixando a sua pegada em forma de espirais, labirintos, covinhas ou cruzes. E entre tanto desenho de difícil interpretação alguém sentiu a necessidade de gravar uma Estrela de David.

Estrela de David na Foxa Velha, Rianxo.